terça-feira, 28 de outubro de 2008

No balanço do busão.

Lá estavam as duas caminhando para mais um dia de trabalho. Toda manhã a rotina tomava conta de suas vidas com o despertador, o despertar e o que ficava desperto ao sair de casa. “Vamos logo Liebe”, ela ouvia e cuspia o que sobrou de pasta de dente e saia correndo, fechando a porta e entrando no elevador rindo de alguma palhaçada.

Uma comia a maçã, outra deixava o sapato de salto na bolsa. Cada uma com um estilo de vida diferente iam rumo a mais um dia de trabalho comentando do sapatinho novo ou da música nova que baixaram. Uma ia para empresa, a outra para agência. Mundos diferentes dentro da mesma casa separados por opiniões e definições.

As duas se sentavam no banquinho olhando para o início da rua por algum sinal. Uma sempre pegava o ônibus cheio e quase nunca tinha onde sentar, assim ela apelava para o chão e espaços que tinham entre os bancos. A outra tinha a oportunidade de nunca se sujar e sempre ter um assento a aguardando. Elas aguardavam os famosos “Terminal Capelinha” e “Terminal Jd. Ângela”. Havia até grito de cada uma “Aooo galera do Terminal Capelinha” e as duas fingiam fazer o onibus gritar! Ou então era “Aooo galera do Terminal Jd. Ângela”, ai o grito mais parecido com um urro devido a super lotação.

Porém como nem tudo são flores, havia dias em que a casa se reunia para relembrar de maravilhosos momentos vividos dentro do transporte público paulistano. E que maravilha, meus senhores, era lembrar de que aquele transporte levava milhares de pessoas espremidas, tentando inutilmente se segurar em canos nojentos e sentindo o delicioso odor de axilas sem banho.

As seis horas da noite entrar no ônibus era quase insanidade, dependendo da situação. Aquilo, sim, era adquirir experiência de vida. Ali imperava a lei do mais forte! Todos se tornavam animais que aguardavam ansiosamente um banco vagar para poder atacar. Ficavam todos em volta das regiões mais propensas a liberar um assento, sondando quem sairia primeiro, como urubus que ficam lá do alto esperando o animal apodrecer. Grávidas não tinham vez, e quem é que tinha? Eram todos vitimas do cansaço de mais um dia de trabalho.

O inferno era maior ainda dentro dos trens. Pessoas batiam nas portas, alguns caiam no chão sendo arrastados pela multidão. A massa não tinha nome, não tinha razão, simplesmente lutava para sobreviver. O inferno dominava o que deveria ser somente o meio de todos chegarem em sua casa.

Porém, a terceira pessoa da casa não participava destas loucuras. Ela tinha o prazer de usar o metro. Ah, aquilo era “suave”. Também tinha sua insanidade as 18 horas da noite, mas nada desesperador. Um pouco apertado, mas aquilo era inevitável.

Mas o que podiam fazer estas três garotas indefesas diante das atrocidades da capital? Lutar pelos direitos de todos aqueles que utilizam transporte público? Talvez, mas elas ainda era três pessoas como qualquer outra na sociedade que não sabiam direito como fazer isto. Por ignorância a maioria se mantinha calado. E quem cala consente.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

O precipício

Já faziam horas que ela se encontrava naquela situação, ou seriam dias? Talvez já fizessem meses a fio que não a ajudavam a progredir. Caminhar significava tomar uma decisão. Muito mais do que uma simples “direita” ou “esquerda”, este primeiro passo era um “sim” ou um “não”. Decisão difícil, pois determinava fechar ou não uma porta que, por enquanto, estava aberta. Porém, mantê-la intacta também era perigoso e aceitar tudo. Será que era isto mesmo que ela queria?

Indecisa e sempre analisando criteriosamente os dois lados, ela tinha medo de tomar a decisão errada. Diante deste questionamento ela percebia que não existia decisão errada, somente a que ela achou mais apropriada naquele momento dependendo da situação em que vivia. Com medo, também, do que seria melhor para o seu futuro ela ainda continuava sem se locomover.

Dar o primeiro passo e aceitar tudo aquilo significava perigo! Uma jornada que não teria volta, cheia de caminhos sinuosos e muito apertados. Era tudo muito tenso, olhar para baixo e ver aquele abismo. Admirar a loucura do salto e lembrar de como é prazeroso se jogar e flutuar. Sentir o seu corpo leve, a respiração solta e cheia de suspiros. Somente deixar o seu corpo ser tomado por esta brisa leve que te guia a lugares encantadores e cheio de romance. O paraíso das sensações no melhor momento de todos: agora.

Ela não tinha mais certeza de nada. Será que era isto mesmo que ela queria? Valia a pena se arriscar, mesmo sabendo que no meio de caminho poderia não existir uma mão que a agarrasse e a segurasse em uma pedra qualquer, antes que caísse no chão. Poderia acontecer novamente aquilo que ela menos queria, sentir-se cortada em pedaços, ter cada parte do seu corpo bruscamente rompida com o passo em falso que ela deu diante do precipício.

Era o risco, o medo, a indecisão e a impossibilidade de ver o outro lado que a deixavam paralisada. Ela só queria a certeza de que no meio do salto ela ia sentir uma mão puxando por ela para uma parte bem gostosa cheia de carinho e afeto, que demonstrariam que a decisão valeu a pena. Ela não se importava com o fato de que aquela mesma mão poderia segurá-la um dia, poderia soltá-la, e assim, ela se espatifaria no chão em pedacinhos muito menores ao ponto de não saber mais como se juntam as peças do quebra-cabeças que formava o seu corpo dolorido.

Depois de juntar todas as partes ela se sentiria renovada, olharia para cada cicatriz com orgulho. Cada pedacinho do seu ser representaria um aprendizado, uma lição, que por mais dolorida que tenha sido, marcou o seu ser por inteiro para formar a pessoa dela. Ela não carregaria mais a dor, pois esta, o tempo ajuda a curar com as mudanças que a gente sofre. Quando menos imaginamos, a dor não é mais sentida, o lamento não tem mais motivo, só existe a lembrança de uma época que fez parte do que você é hoje.

Por isto, ela gostava de se jogar, por isto, ela não tinha do que se arrepender. E sempre que se via olhando lá para baixo do precipício era porque ela já tinha se atirado.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Acordo Silencioso.

Elas sabiam tudo uma da outra, cada uma tinha a sua opinião a respeito de cada atitude das outras. Ali, a privacidade estava nas idéias, a liberdade de se expressar era reprimida pelo sentimento de medo. Todas se entendiam, se respeitavam e se aceitavam. A tolerância era a base da paz na convivência, porque elas precisavam guardar detalhes que, se revelados, machucariam todas.

A necessidade de manifestação não existia mais, era só abaixar os olhos enquanto a outra contava o que havia acontecido que elas sabiam que existia algo naquele olhar baixo que as afastava e que talvez nunca fosse revelado. Segredos que jamais seriam expostos tão levianamente. Opiniões tão bem formuladas e presente na raiz da relação que, uma vez exibidas, ativariam o vulcão adormecido.

Era um acordo silencioso. Cada uma em seu canto, ciente da outra e com sua próprias análises baseada em uma mesma realidade. O filtro existente no interior de cada uma delas era completamente diferente do da outra, o que tornava um mesmo momento com diversos caminhos a se analisar e, assim, impossível de encontrar uma verdade absoluta.

Era esta verdade absoluta que elas colocam como desculpa para a repressão do que as afastava. Sabia-se que se elas ficassem nuas, nunca mais se veriam vestidas entre elas. Mais do que sem roupas elas sentiriam na pele cada arranhão que ecoaria das palavras com o veneno da opinião.

Por isto, era melhor manter-se o silêncio. Tudo continuava bem. O amor é tão grandioso que nos fazia aceitar cada absurdo! E era assim que sempre continuaria, aceitando cada traço de humanidade presente em toda situação que a outra descrevia. Este sacrifício era a maior prova de carinho que elas podiam demonstrar por sentirem medo.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Reencontros e Reviravoltas.

A cozinha estava lotada e no ar sentíamos o impacto da ousadia dos jovens que, descontrolados, buscavam diversão. Não parava nunca de chegar gente trazendo sempre mais combustível da alegria. Era o momento de extrapolar para rir da cara dos amigos e com eles. Abraçar quem a gente ama e sentia muita falta, brincar de siga o mestre com a musica controlando cada passo de insanidade.

Ouvir metal no piano de madrugada, deixar-se enervar por acreditarem que a paixão está acima da ética, descontar em quem não deve e receber chocolate na boca na hora do parabéns. Milhares de sensações ao mesmo tempo em uma mesma noite.

Chorar diante do amor e união, odiar a susceptibilidade da paixão e mesmo assim sair correndo para abraçar e dizer o quanto você ama. Demonstrar também que já amou de forma ardente e hoje ama de forma pura. Tudo isto diante da mais instável realidade.

Conflitos de mundos, pessoas que nunca se viram se encontram. São tantos absurdos que o real torna-se fantasia e a imaginação não se preocupa mais em ser intangível. Diante do desconhecido o homem perde a noção e faz o que ninguém espera.

É o encontro da ansiedade com a felicidade que vai e vem por momentos prolongados durante uma noite e uma manhã em que todos diante da loucura demonstraram a maior cumplicidade e fraternidade pelo outro.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Estado de Consciência imediata.

Enquanto ela assistia TV na sala ela podia ouvir também o barulho da chuva lá fora, a mãe na cozinha mexendo nos talheres, a maciez da almofada que ela estava agarrada e o chocolate que ela mal sentia o sabor. Tudo naquele exato momento a tornava inconsciente da realidade. Ela não tinha percebido que estava há meia hora acariciando o veludo da almofada, nem que a mãe estava fazendo a janta cuidadosamente para toda a família e a chuva só era notada quando um trovão a assustava.

Neste estado de embriagues do presente, ela percebia que estava inconscientemente alerta e assimilando sutilmente as peculiaridades do momento. Não havia análise, era tudo incrivelmente sensorial e sem necessidade de associação para compreensão da situação. Ouvir o barulho delicado dos pingos ansiosos para cair no chão era uma percepção inconsciente da parte de um todo que ela fazia questão de somente admirar.

Para ela não havia a necessidade de estragar a imediaticidade da percepção do presente e inserir signos do repertório construído por ela. Era maravilhoso aproveitar sem entender, sentir sem saber porque, amar e não saber explicar.

Uma inconstância que sempre ressurgia quando as palavras delas não sabiam explicar os sentidos, e as vezes eles não tinham explicação. É parte do universo da ignorância , da preguiça de associar com outros mundos, mas também era parte da mais pura percepção de primeiros impactos e admiração das surpresas.

Mais um trovão a despertou dos devaneios. Será que era ela que ao racionalizar a percepção a compreendia de maneira individual e conseguia somente uma interpretação de milhares ou então a sensação era tão irracional que jamais teria razão?

Ela se jogou no sofá abriu um sorriso, fechou os olhos e percebeu que ela preferia não responder.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Cutucada por agulhas invisíveis.

Sai de perto. Me abraça. Me toca. Porque você quer me empurrar do sofá? Larga mão de ser ridículo! Ah, agora você vai ver. Se fodeu. Toma esta e esta e mais esta, satisfeito? Mas que moleque insaciável, mesmo todo arranhado ainda insiste. Qual é a tua meu? Pronto. Agora você vai ficar ai. Quietinho sem poder se mexer e nem ousar me empurrar do sofá. Feliz?

Ai que frio. Me abraça. No que você acredita? Você está tão quente, como consegue? Eu to tremendo de frio. Deixa eu me ajeitar melhor. Isto, assim está bem melhor. Ah é tão bom ficar assim. Eu também sinto isto, sabia? O que dói em você, dói em mim também. A gente está tão perto. “Sinto vontade de chorar, mas não vou”. Suspiros. Só quero ficar aqui do seu lado quietinha.

Em São Paulo eu não vejo as estrelas. O seu lamento é do coração. Você deixa a dor guiar suas canções. A turbulência que me assusta, me fascinou. Foi esta instabilidade que me fez querer te agarrar. Deixa eu te bater? Porque me sinto completamente sem armas ao seu lado? Seu filho da puta, porque fez isto comigo?

Adeus. Acho que a gente não vai mais se ver. Até uma próxima vez, quem sabe. Ninguém sabe o que nos aguarda. O que ficou foram as marcas nos braços e nas costas, a barriga beijada, o pescoço seduzido pela língua e o lamento dolorido na alma.