domingo, 14 de março de 2010

Apartamento 42.

Abriu a bolsa que já estava aberta. Pegou a chave avermelhada, olhou para a porta trancada. Havia uma mandala ali que tentava inutilmente equilibrar as energias. Inspirou profundamente, o peso que estava
carregando no peito estes dias não a abandonava de jeito nenhum, expirou. Em pouco tempo, o fardo iria ser abandonado, o destino das coisas perdidas se encarregaria dele. Olhou para o corredor deserto, onde separavam-se os apartamentos 41 e 42, duas casas bem distintas. Aprimeira era de uma senhora muito idosa e de sua filha, que de tanto se preocupar com a mãe acabou deixando o rancor tomar conta da sua face. Até que um dia ela faleceu, a porta do 41 ficou aberta a noite inteira aquele dia, o sentimento de pena impregnou no ar e a mulher amargurada deixou suavizar a sua face. No outro apartamento, o 42, desfrutavam da liberdade três garotas. Uniram-se para montar uma república, onde viveriam enquanto faziam a graduação. Eram jovens,
imaturas, inconseqüentes e independentes de certa forma.

Ela olhava diretamente para o número gravado na porta. O quarto andar, de repente, estava tão distante dela, aquela vida não mais a pertencia. Girou a chave e a porta se abriu. Deserta, as moradoras temporárias não se faziam presentes. O sofá que não combinava em nada com o sofá cama, os tacos riscados no chão, a brancura reluzindo por todo o local, a sala havia sido recentemente pintada e a janela gigantesca sem nenhuma cortina demonstrava o desleixo com o local. Não havia sequer uma televisão comunitária ali, somente a estante que
ganhara um novo papel: depósito de cartas. A mesa já estava sem toalha e tudo indicava solidão ao imóvel.

Pegou as cartas que chegavam em seu nome, olhou os remetentes. Banco, propaganda, propaganda e as contas. Agora não precisava mais se preocupar com o pagamento delas. Continuou o seu caminho e entrou no
pequeno corredor, abriu uma das três portas e olhou a janela, o carpete, a escrivaninha, os armários, tudo aquilo havia sido dela por quase quatro anos. Aquele pequeno ambiente havia sido seu ponto seguro por muito tempo, ali chorou, riu, obteve as melhores noticias e, também as piores. O universo criado ali dentro era só dela, construiu seus textos, suas histórias e descobriu sua alma artista. O significado daquilo era imenso dentro de si. Deitou na cama e colocou suas mãos embaixo do travesseiro, a paz voltou. Respirava calmamente, a criança interior sentia-se bem, agora, sentia o último segundo de paz naquele apartamento.

Começou a colocar todas as roupas em uma caixa de papelão, foi esvaziando gaveta por gaveta. A caixa já estava transbordando quando a fechou, passou uma fita para colar e seguiu para a próxima. Foram livros, anotações, aparelhos, bolsas e sapatos. Tudo o que havia ali foi deslocado, os objetos iam fazer mudança e a dona deles estava um pouco impressionada com isto tudo. As prateleiras ficaram vazias, o armário gritava solidão, até mesmo o carpete lamentava que ninguém ia mais sujá-lo. A vida que restava ia embora e com o tempo aquela energia que fora tudo ali dentro, sumiria, também. Haviam cinco caixas ao todo. Não era muita coisa assim. A mudança até que seria rápida, mas ainda tinham algumas panelinhas, talheres, copo e prato. Tudo estava resolvido. Só faltava a máquina de lavar.

Aos poucos foi levando tudo para fora, não havia mais nada dela ali dentro. Coragem, uma parte dela desfalecia diante da porta com o número 42. Lembrou-se dos momentos que passara com as duas outras
moradoras, haviam sido irmãs, conselheiras, amigas e inimigas. A menina que entrara naquele apartamento era muito diferente desta que arrumava a mala e seguia seu rumo para um caminho completamente novo.
Olhou para o chão, abriu um sorriso triste com as memórias, apertou o botão do elevador e desceu.