quinta-feira, 29 de abril de 2010

A irregular disposição de amar.

Um cérebro viciado é um problema. Ele está acostumado a receber a constante inserção do mesmo ativo. A informação pode vir do menor elemento que gera a associação, como uma camisa xadrez que lembra a roupa que ele usou uma vez ou um senhor com uma rosa na lapela que te faz recordar de uma mensagem que ele escreveu. Não importa a qualidade exterior, tudo fará a recordação vingar no interior. A mente aprecia tanto do “mesmo” que faz questão de soltar as memórias constantemente, ás vezes, sem nenhum motivo, só para você caminhar com um sorriso bobo na cara.

Logo cedo, ao abrir os olhos a pessoa querida invade seus pensamentos. Os suspiros começam e você quer alimentar mais e mais este sentimento. Ao passar pelas ruas, todos se tornam um nada, são vultos ao seu redor. Na sua frente só existem os sorrisos encantadores com os olhinhos pequeninhos, quase cerrados, as sensações dos beijos e apertos, o desejo irrefreável de sentir prazer e a sede de ficar ao lado toda hora.

O corpo fica acostumado a amar, a fazer amor e ser amado. A pele anseia pelos lábios nos seios, na barriga e pelas brincadeiras com o umbigo. A língua tem sede do outro e os dentes desejam loucamente manifestar o prazer. Os pêlos. Ah! Os pêlos arrepiados, em excesso demonstrando a masculinidade, roçando a pele, arranhando o rosto e marcando território. Os corpos fatigados de tanto exercício, suados, dormem nus.

Mas, agora, é hora de sair da cama, de abandonar as vontades e quebrar com todas as expectativas. Porque todo sonho tem um despertar e este acaba quando a verdade se sobressai à ilusão. O país das maravilhas tem que terminar, as expectativas devem ser quebradas e os sonhos nunca alcançados permanecem guardados, ali mesmo, na caixinha fantástica do mundo que de um mês fez toda uma existência. Um amor de verão, um doce novembro com final feliz, onde cada um segue seu rumo separado e ficam as somente as melhores partes do que podia ser, mas não foi, do que um queria e o outro não.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Olhou-me para suprir suas carências.
Tocou-me como se não soubesse onde tocava.
Usou-me como uma panela velha.
Comeu-me esganado sem pensar no que fazia.
Amou-me pelo prazer do gozo.
Abusou-me para sentir-se melhor.
Em meu corpo, fugiu de si.

domingo, 14 de março de 2010

Apartamento 42.

Abriu a bolsa que já estava aberta. Pegou a chave avermelhada, olhou para a porta trancada. Havia uma mandala ali que tentava inutilmente equilibrar as energias. Inspirou profundamente, o peso que estava
carregando no peito estes dias não a abandonava de jeito nenhum, expirou. Em pouco tempo, o fardo iria ser abandonado, o destino das coisas perdidas se encarregaria dele. Olhou para o corredor deserto, onde separavam-se os apartamentos 41 e 42, duas casas bem distintas. Aprimeira era de uma senhora muito idosa e de sua filha, que de tanto se preocupar com a mãe acabou deixando o rancor tomar conta da sua face. Até que um dia ela faleceu, a porta do 41 ficou aberta a noite inteira aquele dia, o sentimento de pena impregnou no ar e a mulher amargurada deixou suavizar a sua face. No outro apartamento, o 42, desfrutavam da liberdade três garotas. Uniram-se para montar uma república, onde viveriam enquanto faziam a graduação. Eram jovens,
imaturas, inconseqüentes e independentes de certa forma.

Ela olhava diretamente para o número gravado na porta. O quarto andar, de repente, estava tão distante dela, aquela vida não mais a pertencia. Girou a chave e a porta se abriu. Deserta, as moradoras temporárias não se faziam presentes. O sofá que não combinava em nada com o sofá cama, os tacos riscados no chão, a brancura reluzindo por todo o local, a sala havia sido recentemente pintada e a janela gigantesca sem nenhuma cortina demonstrava o desleixo com o local. Não havia sequer uma televisão comunitária ali, somente a estante que
ganhara um novo papel: depósito de cartas. A mesa já estava sem toalha e tudo indicava solidão ao imóvel.

Pegou as cartas que chegavam em seu nome, olhou os remetentes. Banco, propaganda, propaganda e as contas. Agora não precisava mais se preocupar com o pagamento delas. Continuou o seu caminho e entrou no
pequeno corredor, abriu uma das três portas e olhou a janela, o carpete, a escrivaninha, os armários, tudo aquilo havia sido dela por quase quatro anos. Aquele pequeno ambiente havia sido seu ponto seguro por muito tempo, ali chorou, riu, obteve as melhores noticias e, também as piores. O universo criado ali dentro era só dela, construiu seus textos, suas histórias e descobriu sua alma artista. O significado daquilo era imenso dentro de si. Deitou na cama e colocou suas mãos embaixo do travesseiro, a paz voltou. Respirava calmamente, a criança interior sentia-se bem, agora, sentia o último segundo de paz naquele apartamento.

Começou a colocar todas as roupas em uma caixa de papelão, foi esvaziando gaveta por gaveta. A caixa já estava transbordando quando a fechou, passou uma fita para colar e seguiu para a próxima. Foram livros, anotações, aparelhos, bolsas e sapatos. Tudo o que havia ali foi deslocado, os objetos iam fazer mudança e a dona deles estava um pouco impressionada com isto tudo. As prateleiras ficaram vazias, o armário gritava solidão, até mesmo o carpete lamentava que ninguém ia mais sujá-lo. A vida que restava ia embora e com o tempo aquela energia que fora tudo ali dentro, sumiria, também. Haviam cinco caixas ao todo. Não era muita coisa assim. A mudança até que seria rápida, mas ainda tinham algumas panelinhas, talheres, copo e prato. Tudo estava resolvido. Só faltava a máquina de lavar.

Aos poucos foi levando tudo para fora, não havia mais nada dela ali dentro. Coragem, uma parte dela desfalecia diante da porta com o número 42. Lembrou-se dos momentos que passara com as duas outras
moradoras, haviam sido irmãs, conselheiras, amigas e inimigas. A menina que entrara naquele apartamento era muito diferente desta que arrumava a mala e seguia seu rumo para um caminho completamente novo.
Olhou para o chão, abriu um sorriso triste com as memórias, apertou o botão do elevador e desceu.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Terminal Ana Rosa

Os pingos caiam enlouquecidamente no asfalto, a velocidade com que eles chegavam ao chão só aumentava, criando, aos poucos, um mar transparente e turbulento. Os trovões grunhiam ao fundo ecoando por todos os sentidos. E os raios iluminavam mais ainda o dia com doses de desespero.

Pessoas correndo, carros desesperados, ônibus tentando cumprir a sua obrigação com o transporte público e a ambulância cortando apressadamente o caminho das gotas d água que insistiam em cair.

A sinfonia não tinha fim, os violinos da metrópole espalhavam o caos ensurdecedor, os tambores auxiliavam criando o medo. Mas o coro ao fundo, era como uma droga intoxicante, que não abandonava a música nunca.

O cigarro espalhava a tensão por toda a atmosfera. Estavam todos preocupados, quando é que ela ia acabar? Não se sentia mais o suor de todos no ar. Ficara somente o frescor dos dias de verão, numa cidade tão grande que não pára para sentir a chuva.

Aprisionadas, as pessoas se sentavam no banco de concreto e aguardavam. Observavam homens e mulheres passarem com diferentes tipos de sombrinhas. Todos corriam de um lado ao outro do terminal. Por quanto tempo será que ficariam ali até a chuva passar?

Eram escravos do tempo neste momento. Sentiam-se enfraquecidos, incapazes de fazer qualquer coisa para seguir em frente. Estavam a deriva, enquanto a finalidade da chuva não era prevista.

A impotência de todos fervilhava. Qualquer decisão acarretava em uma conseqüência desagradável. A melhor era ficar ali quieto até obter-se a garantia de que tudo havia passado. Em alguns casos, ficar parado era mais perigoso do que tomar a chuva e pegar uma gripe.

O medo dos próprios pensamentos levava algumas pessoas a saírem na chuva atropelando todos os olhares pelo caminho. Abandonado, o terminal continuava cuidando daqueles que aguardavam e meditavam. Os mendigos e pedintes.

sábado, 28 de novembro de 2009

O travesseiro estava tão fofinho, tão gostoso. Ela não conseguia tirar a cabeça dele, sentia-se exausta e não queria sair dali de jeito nenhum. O mundo dos sonhos havia a consumido por completo, ela observava-se subindo, subindo, subindo em busca do inatingível. Seu braço estava tão próximo de todo aquele prestígio, o troféu que iria carregar.

Seria capaz de afastar tudo o que era necessário, via somente o objetivo. Queria ver-se linda, maravilhosa, com um espelho cheio de flores e bajulações. Estava cometendo um enorme pecado e nem ao menos conseguia olhar dentro de si mesma.

Era uma escolha. Havia decidido por aquilo que a fizera ter brilho nos olhos, o desejo de ver do palco a platéia aplaudindo de pé. Mas esquecera de alguns detalhes no meio do caminho. Perdeu seus princípios em um passo em falso. Completamente cega caminhava lentamente para a sua cruz, sem nem ao menos perceber. Seu lema era se enganar constantemente com atitudes racionais, grande engano.

Era muito mais emocional do que imaginava, sentia a culpa, o amor, o remorso e principalmente o arrependimento. Foi neste instante que se percebeu completamente humana, suas atitudes de deusa acabavam por aqui. Ela tinha compromisso com quem cativava e estava pagando muito caro por ter faltado com isto.

Tudo isto porque o troféu havia sido estilhaçado no chão. Agora ele não valia mais nada, eram somente cacos espalhados por todos os lados. Foi preciso se cortar em diversas partes do corpo e sentir o sangue escorrer pela sua pele, para perceber que tudo aquilo era uma ilusão.

Notou que na verdade os problemas que a feriam eram porque ela não fazia parte daquele mundo, o seu jeito não encaixava ali. Estava buscando ser algo que não era. Ainda tinha toda aquela essência dentro de si. Por isto, diante de tudo, notou que estava sozinha.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Fiquei dias ruminando um sentimento. Os momentos passavam em replay na minha cabeça regurgitando todas as sensações, salivando os desejos da língua até o céu da boca ficar assado. Havia uma sombra em mim. O passado havia retornado, reativando o que estava adormecido.

Como uma flor que abre em plena primavera, pude observar aquilo florescer aqui dentro. Tinha raiz, caule e as pétalas. Eu podia soprar o pólen para todos os lados espalhando a sensação de pura felicidade. Era tão prazeroso caminhar nas nuvens. O jeito moleque de bem com vida me deixava encantada, lembrava-me de sonhar sem colocar os pés no chão. Assim, como a melodia que chega de repente e te abala profundamente, percebi-me invadida por aquele sorriso.

Havia algo ali impossível de controlar. O bem-estar era tão gratificante que eu não me importava mais em carregá-lo junto comigo para onde quer que fosse. Tornara-se parte de mim. Era uma sementinha muito bem plantada que a qualquer momento poderia voltar a ser uma flor e soprar encantamento para todos os lados.

Carregar o sentimento não tinha mais peso. Era tudo tão simples e romântico que a aceitação era inevitável para a continuidade do relacionamento. Cada um aceita os limites, mesmo quando os limites pedem a distância.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Laços de Fita.

Suavemente ela deixava os pés percorrem por toda a superfície da calçada para ser arrastada pelo tempo, sentia-se completamente perdida em devaneios. Os olhos não processavam o que viam corretamente e seus sentidos ficavam difusos diante às emoções aprisionadas.

Devia ser a vontade de voltar ao tempo, de reviver uma época específica que a fazia perceber que é impossível matar um sentimento. Nada havia sumido de dentro dela, as faíscas criadas em uma noite permaneciam aquecidas em fogo brando. Não conseguia jogar ao vento o calor que acalmava seu coração.

Olhou para o poste da rua, será que ele vai apagar quando eu passar? Ela adorava estas idéias, enquanto todos morriam de medo do que poderia acontecer ao passar ao lado dos postes, ela somente ria e se divertia com as falhas das criações humanas. Mas no meio daquela luz tinha uma coisa voando, se mexia delicadamente, caindo leve como uma pluma e espalhando cor e brilho para baixo. Colocou a mão na testa para enxergar melhor, e viu, bem mais perto, agora, uma fita rosa. Encantada correu para pega-la.

Era daquelas fitas que todas as moças colocam na roupa para ficar mais belas. Sorrindo lembrou-se de vestidos maravilhosos com os quais ela ficaria linda. Era somente um acessório, mas poderia fazer toda a diferença em uma roupa, do mesmo modo que um olhar também consegue mudar tudo.

E foi assim que ela entrou naquele paraíso entorpecente, a magia de um sorriso criou o primeiro brilho de luz, a chama daquela fogueira já se propagava, mesmo quando, ninguém imaginava que aquilo era possível. A fita conseguira enroscar duas pessoas tão diferentes uma da outra. Os nós começavam a ser atados no peito e uma vez feitos, sofre-se com a eternidade das marcas.

Era uma fita para este lado, a outra para aquele e juntos formavam um lindo laço. Quanto mais bem feito, mais bonito ficava. Os laços frouxos ou muito fortes nunca duravam, ou eles se desatavam ou, com a maior brutalidade, arrumavam uma tesoura para terminar com tudo de forma ignorante.

Mas aquela fita era a representação daquele laço, aquelas marquinhas eram a lembrança de fortes emoções. Era algo reconfortante reviver. Dava vontade de sorrir e chorar ao mesmo tempo, pulou na guia da calçada e deu um rodopio que levantou sua saia. Tudo se misturava dentro dela e ela só conseguia ter certeza de uma coisa, que a fita, agora, não tinha nó nenhum, somente uma parte amassada que ela carregava no coração.