segunda-feira, 14 de junho de 2010

O veneno pintado

Corri ao encontro de uma dose imediata do mais eficiente remédio. Arrepiava-me ao contemplar no escuro as minhas lembranças. Guardadas em um abismo longe, ao fundo, no obscuro que somente um medicamento que mata e cura, pode se alimentar da dor.

Relutante, agarrei o pincel que encontrei dentro daquela sala arredondada. Pressionei-o em minha mão e aos poucos eu observava as cores nubladas, em um tom azul escuro, espalhadas por toda uma ilusão branca e vazia. Busquei pela tinta na salinha e arremessei o pincel dentro da lata. Azul marinho, quase o preto de um buraco sem fim. Com as pintinhas borradas eu recheei de detalhes as nuvens daquela tela. Queria ver o choro do céu das fantasias, as lágrimas derramadas pela infantilidade da vaidade e da compreensão ardida dos sonhos perdidos.

Ao som de um jazz suave, larguei o pincel na mesinha ao lado e deixei-me fluir solitária. O piano arrepiando os meus pelos e os meus dedos passando pela pele, com um toque de amor. Os ombros balançando suavemente, seguindo o ritmo da sensação que transbordava em mim. Os pés mexiam-se delicadamente para frente e para trás, fluindo com toda a delicadeza do momento. Calmamente, dei a minha primeira volta e meu corpo continuava a balançar com a doçura da liberdade interior. Sorri como quem descobre uma novidade estupenda e dei mais uma volta. Expirei e meus olhos ainda se mantinham fechados, só queria aproveitar os sentidos daquele instante puro e belo. O agudo da cantoria me encantava e eu me sentia mais feminina e mulher. Respirei profundamente, lágrimas fluíram sem compreensão e continuei em sintonia com o invisível captando os mais sublimes desejos. Os segredos do meu eu estavam ali, naquele momento intangível, guardados com a ingenuidade de quem ama e não sabe o porquê. Ainda com o sorriso, apreciei o gosto das lágrimas que fugiam de mim em vão. Terminava com as minhas duas mãos na cintura, em um abraço intimo.

As últimas teclas do piano sinalizavam o fim da magia, agora, eu podia abrir os olhos. E aquela música que havia reinventado meu ouvido e, ao mesmo tempo, buscava em mim um criador, um senhor fantástico, capaz de gerar sentido àquelas notas, acabou derretida dentro de mim. Minha visão havia sido renovada e meus suspiros de amor fluíam aliviados pela nova imagem humanista que admirava o quadro.

Todo aquele peso de cores, o excesso de escuridão, de repente, havia se tornado natural. Parte de mim deixou fluir todas as emoções, purificar as paixões e atingir o mais sensível e único que cada pessoa pode alcançar. Meu quadro estava iluminado. Brilhava com o espanto de quem está vivo e se assusta com e experiência de ser humano.